Toda segunda-feira o carioca Luiz Eduardo Baptista, presidente da operadora de TV por assinatura Sky, deixa São Paulo, onde mora, para passar algumas horas em sua cidade natal. A rotina é puxada. Bap, como é conhecido, embarca no fim da tarde e volta logo na manhã seguinte. No Rio de Janeiro, reúne-se com outros figurões do mundo dos negócios - como Rodolfo Landim, sócio da Mare Investimentos, Wallim Vasconcellos e Eduardo Bandeira de Mello, ex-diretores do BNDES, e Flávio Godinho, sócio do Grupo EBX. As conversas costumam avançar na madrugada. Horas depois, Bap já está no Santos Dumont esperando o avião que o levará de volta a São Paulo. O que une esse grupo de executivos com interesses aparentemente difusos é o time do coração de todos eles, o Flamengo. Em dezembro, eles foram eleitos para comandar o clube pelos próximos três anos. O plano deles é levar para o futebol as práticas com que convivem há anos no mercado corporativo. Tem sido um choque. Clube com a maior torcida do país, o Flamengo se tomou célebre por levar a má gestão a um patamar que oscila entre o trágico e o cômico. Salários atrasados, dívidas não pagas, bens penhorados na Justiça (o time em que "a diretoria finge que paga e a gente finge que joga", nas palavras de um ex-jogador). Era, enfim, uma bagunça. E tem dado trabalho ao time de executivos que assumiu. O primeiro passo foi um arrocho nas contas. Em janeiro, eles iniciaram um processo de cortes de gastos que levou ao rompimento do contrato do maior ídolo da torcida, o atacante Vágner Love - que fingia receber 1 milhão de reais por mês e mal fingia que jogava. A ordem é cortar 40% dos custos em todos os departamentos até o fim do ano. A atual gestão promete transparência incomum. Em abril, a auditoria Ernst & Young descobriu que as dividas do Flamengo somavam 750 milhões de reais, 50% mais que a estimativa anterior. Em seguida, o grupo anunciou que a torcida poderia monitorar as finanças em balanços trimestrais, disponíveis na internet. "O que nos uniu foi a indignação pelo momento do clube", diz Bap, vice-presidente de marketing do clube. "Só de fazer o básico, os resultados já estão aparecendo." Os custos mensais com o futebol caíram de 8 milhões para 6 milhões de reais. E, em 2013, o clube pagará 80 milhões de reais em dívidas. "O Flamengo era uma empresa quebrada", diz Eduardo Bandeira de Mello, presidente do clube. "Parece óbvio, mas, a partir de agora, a gente só gasta o que tiver."
E cedo para dizer se a nova gestão do Flamengo será tão revolucionária quanto promete, mas o currículo e a postura inicial de seus diretores são exemplos de um novo momento do futebol brasileiro. Apesar de ser profissional desde 1933, o esporte ainda é comandado de forma amadora no país. Os dirigentes das principais equipes são em geral torcedores com conhecimentos limitados de administração. Práticas de gestão comuns em qualquer padaria - como planejamento - ainda são coisa rara. E a ladroagem é grande. O resultado é que os clubes brasileiros vivem em uma penúria eterna. Os 20 maiores do país acumularam 2 bilhões de reais em prejuízo nos últimos oito anos. Devem, em conjunto, 4,7 bilhões de reais. Suas partidas têm média de público menor até do que o campeonato dos Estados Unidos, onde o futebol que importa é aquele jogado com bola oval.
Mas, de uns tempos para cá, algo parece estar acontecendo com o futebol brasileiro. Casos de boa gestão de clubes surgem aqui e ali, com resultados excepcionais, inclusive dentro de campo. Com ousados planos de marketing e finanças em ordem, o Internacional e o Corinthians tomaram-se campeões mundiais de clubes. O Santos montou um comitê formado por executivos de grandes empresas para tocar o clube. Eles criaram um modelo único para manter o jogador Neymar no país - mesmo custando quase 1 milhão de reais por mês de salários, manter o craque fez com que as receitas triplicassem em quatro anos e o clube desse lucro (no fechamento desta edição, Neymar estava finalmente prestes a ser vendido). O clube criou uma regra para garantir que 20% do investimento em futebol seja aplicado na formação de novos jogadores. Esses e outros exemplos dão esperança de que, com uma boa dose de capitalismo, o futebol brasileiro pode ser salvo.
Uma conjunção de fatores dá razão a esse otimismo. O primeiro é político. Diretores de clubes estão constatando que ter uma gestão minimamente em ordem ajuda a ganhar títulos - e a definir vencedores na eleição seguinte. E um fenômeno parecido com o que marcou a administração dos estados brasileiros na última década. Quando os políticos notaram que gerir as contas públicas de forma racional dava voto, tornaram-se fiscalistas apaixonados. E os exemplos de Corinthians, Inter e Santos já estão sendo seguidos. Metade dos clubes da primeira divisão deu lucro no ano passado, algo inédito.
Mas talvez o principal fator a impulsionar a atual mudança seja financeiro. O futebol brasileiro está se tornando um negócio grande demais para ser deixado nas mãos, e nos bolsos, de amadores. A receita dos clubes brasileiros quadruplicou desde 2004. Em 2012, os 20 principais times do país faturaram mais de 3 bilhões de reais. No mesmo período, a receita dos 20 maiores clubes europeus avançou 60% e chegou a 12 bilhões de reais. A distância ainda é enorme, mas está diminuindo rapidamente. A maior responsável por esse salto é a televisão. Em 2012, a Rede Globo assinou um novo contrato com os principais times do país que rendeu 1,2 bilhão de reais de receita. Para TVs do mundo todo, transmitir esportes é um negócio extremamente rentável - ao contrário do que acontece com séries ou filmes, ninguém grava uma final de futebol. A graça está em ver o jogo ao vivo, e o público acaba sendo obrigado a assistir aos anúncios. Por isso, a Globo não pôde se dar ao luxo de perder a concorrência para a rival Record, que demonstrou interesse no Campeonato Brasileiro. A cota de TV subiu, de um ano para o outro, 50%. A Copa de 2014, obviamente, ajuda a criar um ambiente positivo. Irregularidades e estouros de orçamento à parte, os novos estádios - que custaram 7 bilhões de reais - podem trazer de volta um público que há anos preferia assistir aos jogos em casa. Há semelhanças com o momento que o campeonato inglês viveu em 2004, quando um expressivo aumento dos contratos de televisão transformou o torneio no mais valioso do futebol mundial. Ou com o futebol alemão, que, após construir estádios para a Copa de 2006, passou a ter a maior média de público do futebol europeu: 45.000 pessoas por jogo, o triplo do que temos aqui.
Com tantas oportunidades, as empresas estão desbravando novas formas de ganhar dinheiro com o futebol - o que rende ainda mais dinheiro para os clubes. A seguradora alemã Allianz investiu cerca de 300 milhões de reais para batizar o novo estádio do Palmeiras pelos próximos 20 anos. "O estádio é um meio fantástico de aparecer para os consumidores", diz Edward Lange, presidente da Allianz no Brasil. O Grupo Petrópolis, dono da marca Itaipava, investirá 200 milhões de reais para nomear a Arena Fonte Nova, em Salvador, e a Arena Pernambuco, com o propósito de aumentar sua participação de mercado por lá. Mas a iniciativa mais inovadora é da Ambev. Em janeiro, a cervejaria lançou o projeto "Movimento por um futebol melhor". É um programa que dá descontos na compra de determinados produtos - entre eles, claro, cerveja - para os sócios dos clubes. Em quatro meses, o quadro social dos principais times do país passou de 159.000 para 465.000 pessoas. "Se tivermos ambição e boas ideias, poderemos aproveitar os novos estádios e ter o melhor campeonato do mundo", diz Ricardo Tadeu, executivo da Ambev responsável pelo projeto. A meta é chegar a 2015 com 3 milhões de sócios, o que renderia um acréscimo de 1 bilhão de reais por ano aos clubes.
Não é a primeira vez que os clubes brasileiros flertam com gestão profissional e lidam com somas vultosas. Em versões anteriores, a coisa acabou mal. Em 1992, a fabricante de laticínios italiana Parmalat assinou um contrato com o Palmeiras e passou a gerir o departamento de futebol do clube. Contratou craques e foi bicampeã brasileira. Mas, com a saída da empresa, o time vencedor foi junto. Depois, ao longo dos dez anos seguintes, diversas multinacionais de marketing esportivo fecharam acordos com clubes como Corinthians, Flamengo e Grêmio. A promessa era sempre a mesma: um caminhão de dinheiro para faturar todos os títulos possíveis. Mas os acordos terminaram antes do prometido, com os clubes ainda mais endividados. Por que desta vez será diferente?
Um bom termômetro é o fato de que, agora, os projetos partem dos próprios clubes. Todos parecem ter percebido que a era das soluções mágicas ficou no passado e que o trabalho à frente é árduo. O Fluminense, dono de uma dívida de 430 milhões de reais, começou em 2012 um plano de corte de gastos - as despesas caíram 7 milhões de reais em relação a 2011. O clube gastava mais de 200.000 reais por mês apenas em água por causa de um vazamento na piscina de sua sede social. Corrigir essas anomalias não resolve o problema, mas é um começo. Aos poucos, práticas corriqueiras de gestão começam a mudar o destino dos clubes. O caso mais emblemático é o Corinthians. Em 2007, o time foi rebaixado para a segunda divisão. Gastava 85% de sua receita para pagar os custos do time. Desde então, o Corinthians enxugou os gastos e montou um agressivo plano de marketing. Em parceria com a fabricante de material esportivo Nike, o clube lançou a marca "República Popular do Corinthians" para vender produtos oficiais do clube a 30 milhões de torcedores. A receita triplicou, e os custos com futebol foram limitados a 63% do orçamento. Em 2012, o time teve lucro de 7 milhões de reais e conquistou o Mundial de Clubes. Um dos pilares dessa nova fase é uma análise criteriosa dos investimentos. "Clubes ainda compram jogadores com base no impulso. Nós passamos a fazer contas", diz Edu Gaspar, ex-jogador do time e atual gerente de futebol. Gaspar importou do Arsenal, clube inglês que defendeu por cinco temporadas, um departamento de estatística. No Arsenal, 48 pessoas analisam partidas dos principais torneios do mundo e computam dados de centenas de atletas - sempre de olho em jogadores que estejam evoluindo discretamente e sejam mais baratos do que estrelas que fazem um gol na final e mais nada ao longo do ano. O Arsenal levou a prática tão a sério que passou a ser criticado pela torcida por sua lógica estritamente financeira. Graças à base de dados, o Corinthians chegou ao atacante peruano Paolo Guerrero, contratado do Hamburgo, da Alemanha, e autor do gol do título mundial em 2012. O Grêmio começou neste ano a fazer uma análise parecida. Passou a observar jogos das categorias de base na Argentina, no Chile e no Uruguai em busca de revelações. Recentemente, contratou dois argentinos para o time juvenil.
Clubes, como nações, vivem pressionados a entregar os melhores resultados possíveis hoje. Nos dois casos, o objetivo final não é dar dinheiro - mas países e clubes que ignoram por anos o bom senso financeiro acabam, como o Flamengo ou a Grécia, na lama. Os clubes brasileiros costumam trocar de presidente a cada dois ou três anos. E esse o tempo que os dirigentes têm para conquistar títulos e conseguir a reeleição. Por isso, é comum que invistam pesado e arrisquem alto nesse prazo curto. A consequência histórica tem sido uma gestão financeira suicida. Países tentam superar esse choque de incentivos criando instituições que sobrevivam aos desejos do governo de plantão. O Internacional fez algo parecido. Definiu um plano estratégico de longo prazo: até 2019, a meta é dobrar as receitas, para 500 milhões de reais, e chegar a 200.000 sócios. Os futuros presidentes são obrigados, por estatuto, a levar os planos adiante. Faz parte do projeto investir em marketing para atrair sócios. A gestão seguinte não pode usar o dinheiro com outra coisa.
Outra barreira que vem sendo superada aos poucos é a politicagem interna que assola os clubes brasileiros. Em 2009, quando uma nova diretoria assumiu o comando do Santos, encontrou um cenário esdrúxulo. Com receita de 70 milhões de reais e prejuízo de 46 milhões em 2009, o clube era usado para a ascensão política e social de dezenas de torcedores. Tinha 36 diretores - havia até diretor de banquetes. Eles foram substituídos por dois executivos remunerados. Antes, a discussão dos temas importantes ficava a cargo de um grupo de mais de 200 conselheiros. Qualquer aprovação levava semanas. Hoje, o Santos tem um comitê gestor que reúne o presidente, o vice-presidente e sete empresários torcedores. Eles se reúnem toda semana para tomar as decisões do dia a dia É curioso que seja o próprio Santos o exemplo dos limites do capitalismo num clube de futebol. Há quatro anos, o clube vendeu 45% dos direitos econômicos do atacante Neymar para dois fundos de investimento. Foi uma forma de pagar as contas do ano e manter o jogador. Mas o contrato do atacante vence em julho de 2014 e, para os investidores, a hora de vendê-lo é agora. Vencido o contrato, Neymar fica livre para negociar com qualquer clube, e os investidores e o Santos não receberiam nada pela transação. O Santos, claro, também tem a ganhar com a venda imediata - mas manter o jogador até o fim do contrato não deixa de ser uma opção interessante, já que ficou provada a diferença que Neymar faz nas vendas de camisas e mesmo na simpatia do Santos entre os jovens. Para os fundos, a permanência do craque no Brasil por mais um ano seria um desastre. "Os investidores estavam cientes do risco quando entraram no negócio. A palavra final sobre a negociação cabe apenas ao Santos", diz Álvaro de Souza, ex-presidente do Citibank no Brasil e integrante do comitê gestor do clube.
Nem todos os ventos jogam a favor de uma gestão mais eficaz dos clubes brasileiros. No mundo inteiro, a cultura do esporte tende ao desperdício. Na teoria, os clubes precisam organizar a casa para evitar perder dinheiro e, no limite, ficar insolventes e não ganhar títulos. É o que funciona com as empresas, que, mal administradas, quebram. Mas, na prática, clubes de futebol são instituições incrivelmente estáveis. Na Europa, dos 74 clubes que jogaram os campeonatos da Inglaterra, da França, da Itália e da Espanha em 1.950,62% disputam a primeira divisão até hoje. E, na média, continuam a perder dinheiro. No Brasil, o Ministério do Esporte e deputados federais tentam aprovar uma medida provisória para perdoar as dívidas dos clubes com o Fisco. O plano é que eles recebam um perdão de 90% da dívida. Em troca, ofereceriam sua estrutura para jovens de comunidades carentes. E chamar de idiota quem está apertando o cinto. Embora a lei permita que os clubes se tornem empresas com fins lucrativos, ninguém quer abrir mão dos benefícios fiscais a que as agremiações têm direito. A distância a percorrer até um ambiente de fato capitalista no futebol, ninguém duvida, é grande.
Como, então, forçar os clubes a se manter saudáveis? A experiência recente mostra que a resposta tem sido algo que qualquer economia precisa para funcionar - um pouquinho de regulação. Em 2013, a Uefa, responsável pelos campeonatos europeus, vai exigir disciplina de seus membros. Clubes que acumularem prejuízos de 45 milhões de euros serão excluídos dos torneios. Investimentos que fujam às fontes tradicionais de receita também serão proibidos (xeques árabes e bilionários russos incluídos). A Uefa caminha na direção das ligas americanas, de longe as mais valiosas do mundo. A maior delas, a NFL, de futebol americano, é também a mais preocupada com o espetáculo. Lá, tudo é pensado para manter o equilíbrio e a saúde financeira das equipes. Desde 1961, os contratos de televisão são negociados em conjunto, e todos os 32 times recebem fatias iguais - cerca de 120 milhões de dólares por ano. Há pisos e tetos salariais. E 30% da receita com ingressos é distribuída para os clubes. Vem dando certo. Todos os 32 times da liga estão entre as 50 marcas esportivas mais valiosas do mundo. Apenas três tiveram prejuízo na última temporada. E 98% dos ingressos foram vendidos. "O futebol americano é a maior prova de que esporte pode ser um grande negócio", diz Anita Elberse, professora da escola de negócios de Harvard. A NFL também é um fenômeno para os investidores. Desde 1998, o valor de mercado dos clubes quadruplicou. Não é à toa que a NFL é apelidada de liga socialista. O brilho dessas medidas está em evitar o domínio absoluto de quem tem mais poder econômico. Na Europa, o mesmo punhado de clubes disputa todas as ligas nacionais. São os mais ricos, com mais dinheiro para comprar estrelas. No Brasil, o risco para o torcedor é que o caminho seguido seja esse. Flamengo e Corinthians, os times mais populares do país, ganham 120 milhões de reais por ano da Globo - o dobro de rivais como Botafogo e Atlético Mineiro. Trata-se de um perigo para aquele que é um dos campeonatos mais equilibrados do mundo. O jeito capitalista pode salvar o futebol brasileiro da praga dos dirigentes amadores. É torcer para que não estrague o que vinha dando certo antes.
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Os torcedores do Arsenal, da Inglaterra, têm um costume peculiar. Um de seus cantos mais populares é "Spend some fucking money" - em português educado, algo como "Gaste o diabo do dinheiro". Há 17 anos sob o comando do francês Arsène Wenger, o Arsenal virou o maior exemplo de uma discussão que não tem resposta fácil. Um clube de futebol deve ganhar dinheiro ou gastá-lo? O Arsenal é um fenômeno de lucratividade. Não tem prejuízo há 11 anos e acumula 600 milhões de reais de lucro desde 2007. Mas não levanta uma taça desde 2004.
Economista de formação, Wenger levou para o Arsenal sua obsessão por números. Quando vende um atleta, é porque as estatísticas mostram que ele chegou ao ápice físico e técnico. Faz sentido econômico. Mas essa lógica o levou a vender, em 2012, o holandês Robin van Persie, artilheiro da liga inglesa, para o rival Manchester United. A torcida enlouqueceu (Van Persie foi artilheiro de novo em 2013, e o Manchester, campeão). Mas o dono do clube, o bilionário Stan Kroenke, não se importa. Ele investiu o dinheiro das negociações na construção de um dos estádios mais modernos da Europa, que lhe garante 8 milhões de reais de receita por jogo.