BOLÍVAR TORRES - O GLOBO
Séries e filmes que marcaram gerações não sobrevivem aos novos olhos do mundo. O que para os pais era ‘normal’ exala preconceito, estigma e falta de representatividade para os filhos. Em tempos de playlists ultrapersonalizadas, quem são, o que pensam e como os jovens de hoje estão mudando a indústria cultural ?
Na época em que “Friends” foi ao ar pela primeira vez, de 1994 a 2004, Eliza Franco era uma criança. Só agora, aos 19 anos, ela descobriu a icônica série sobre seis amigos que vivem em Nova York. E ficou bastante incomodada.
Quando um sujeito faz graça de um homem que trabalha como babá, ela identificou “homofobia”. Ao ver uma personagem sendo alvo de bullying por estar com uns quilos a mais, decretou: “gordofobia”. Eliza também não gostou do fato de uma mulher loura aparecer representada como “a burra do grupo”. E estranhou a falta de negros.
As queixas da estudante são comuns entre parte dos jovens com menos de 30 anos. Com postura crítica nas redes sociais, eles vêm desconstruindo os produtos culturais das gerações anteriores — e clamando por mais representatividade e respeito às diferenças. De séries populares anos atrás, como “How I met your mother”, a filmes clássicos da juventude dos anos 1980, como “Gatinhas e gatões”, passando por desenhos animados como “Pica-Pau”, não há produto pop que escape ao “raio problematizador” dos mais jovens.
— Somos a famosa geração mimimi, tudo é problematizado e vira um auê — diz Eliza, que estuda Comunicação Social na UFRJ. — Mas é porque se chegou a um ponto em que o mundo está muito diferente, mas ainda há muitas pessoas que não nasceram neste novo mundo. Nossos pais viviam num tempo em que ser gay era quase crime. Já quem cresceu num mundo com internet tem mais poder de fala e liberdade. Então, rola um choque.
O recado é claro : não há mais carta branca para endossar preconceito na indústria do entretenimento. E não é um acaso que essa consciência crítica tenha encontrado na televisão um de seus principais palcos. É o que explica o pesquisador Pedro Curi, doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF, onde desenvolveu a pesquisa “À margem da convergência: hábitos de consumo de fãs brasileiros de séries de TV estadunidenses”. Janela de nossas realidades, a telinha sempre foi um lugar de discussão de temas atuais.
Por ter crescido com a TV a cabo e o streaming, lembra Curi, quem tem menos de 30 anos criou uma nova forma de se relacionar com o entretenimento. E se habituou a um consumo personalizado, elegendo conteúdos com seu exato perfil. Na era da diversão customizada, faz-se a própria playlist de músicas, vídeos e programas. O que vem a mais é sugerido por algoritmos, programados para seguir o mesmíssimo perfil do que já se consome.
— Você não tem mais apenas o programa que foi feito para o país inteiro e trabalha com padrões dominantes — lembra o pesquisador. — Agora há programas que trazem minorias representativas e discussões em torno delas, porque trabalham com público menor e mais específico. Quem cresceu podendo escolher o que vai ver estranha quando descobre programas feitos para as massas, e que não atendem a seus padrões e sensibilidades.
A estudante de Relações Internacionais da PUC-Rio Mayara Maciel da Costa, 19 anos, diz que perdeu o interesse por programas que não tenham representatividade. Ela gostaria de ver mais obras que mostrem sua realidade, de “jovem negra, que vive com dinheiro contado e lida o tempo inteiro com preconceito”, como define :
— Depois que começa a criar consciência de que alguns grupos são deixados de fora e tornados invisíveis, você fica numa posição complicada. Quer ver alguma coisa só para se distrair, por exemplo, mas ao mesmo tempo percebe que está assistindo a uma reprodução de ideias em que não acredita. Está cada vez mais difícil achar alguma coisa para ver.
Embora considerem o questionamento dos jovens legítimo, alguns especialistas temem que eles acabem se fechando em suas bolhas de interesses, sem conhecer realidades diferentes das suas. Integrante do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul, a professora Adriana Amaral lidera o grupo de pesquisa CultPop, focado em cultura digital, cultura pop, fãs e subculturas. E pondera que esse isolamento é uma prática que ganha força com os algoritmos da internet e sua tecnologia de sugerir conteúdo com base no histórico de preferências do usuário.
Ao pesquisar o comportamento dessa nova geração na internet, Adriana identificou que a indústria cultural se tornou um verdadeiro campo de embate das políticas identitárias. Usando ferramentas de mobilização, hashtags, memes e gifs, fãs e haters brigam entre si pedindo mais ou menos diversidade nos produtos. O lançamento dos últimos episódios de “Star Wars”, por exemplo, gerou campanhas louvando ou atacando a diversidade de seu elenco, que conta com uma mulher e um negro em papéis de destaque, além de sugerir uma relação homoafetiva entre dois personagens.
— Não podemos esquecer que essas táticas de mobilização unem grupos que pensam igual e podem nos deixar cada vez mais enredados em nossos filtros-bolha — diz Adriana. — Até quem é indiferente sente-se pressionado a falar, para fazer parte desse círculo, se sentir incluído e ter visibilidade.
Ela identificou que certos jovens têm dificuldade de entender o contexto de outras épocas :
— Muitas vezes, veem uma série ou filme antigo e já colocam numa “caixinha de registro”, não entendem a circunstância em que aquilo foi feito.
A internet estaria fragmentando a busca por diversidade, aposta o advogado e pesquisador Eduardo Magrani, coordenador de Direito e Tecnologia do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio e autor de “Democracia conectada”:
— As redes sociais podem servir tanto para questionar ofensas quanto para naturalizá-las. Nesse sentido, as mídias tradicionais cumprem melhor o papel de criticar o discurso preconceituoso. A sociedade se preparou durante anos para identificar a ofensa e o preconceito. As escolas hoje já ensinam que determinados comentários e ofensas podem destruir vidas.