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Autor do arrasa-quarteirão “O código Da Vinci” (2003), que vendeu 80 milhões de exemplares e virou filme estrelado por Tom Hanks em 2006, Dan Brown acaba de tirar do forno mais um thriller protagonizado pelo simpaticão Robert Langdon, professor de iconografia religiosa em Harvard.
No livro “Origem”, os ingredientes são familiares : uma seita secreta ultraconservadora, um homicida cristão fundamentalista, críticas às religiões, pitadas de filosofia de botequim e o molho secreto de sempre. Bom proveito.
O feijão com arroz do escritor americano costuma dar certo, e nada sugere que será diferente agora.
Espécie de Indiana Jones sem presepadas, desta vez o professor Langdon se vê enrolado na Espanha, graças ao bilionário Edmond Kirsch, seu ex-aluno e amigo de longa data.
Aos 40 anos, Edmond é um gênio da tecnologia que vive em Barcelona. Vaidoso, coloca-se na mesma linhagem de ninguém menos que Galileu, Copérnico e Darwin. Como pretensão pouca é bobagem, prepara-se para anunciar via internet uma novidade que vai revolucionar o planeta. Mais do que isso, garante que responderá a duas perguntas até hoje irrespondíveis : De onde viemos ? Para onde vamos ? Apenas isso.
Antes do anúncio oficial, porém, Edmond cai na besteira de contar sua descoberta para os chefes das três maiores religiões monoteístas do planeta. Eles ficam apavorados. O líder muçulmano, por exemplo, se vê tão atarantado que se mata. O rabino também sai do prumo. Reações um tanto inverossímeis, mas vá lá. E o líder católico ? Aí é que está o busílis. O líder católico é um bispo espanhol ultraconservador, descontente com a permissividade exagerada do Vaticano em relação a fatos da vida como controle de natalidade e casamento gay. Linha-dura, o bispo Antonio Valdespino é profundamente ligado ao rei da Espanha, com forte influência sobre as altas esferas políticas e religiosas. Diga-se que o rei está moribundo, e o príncipe Julián, que vai suceder a ele, é um pateta.
E o que Edmond está planejando ? O bilionário quer nada menos que usar a ciência para erradicar o mito de todas as religiões. Como fazer isso ? Edmond é engenhoso. Ele sabe tudo sobre pesquisas biológicas, modelagens matemáticas e o poder da computação quântica. É por esses meios que ele garante ter descoberto a origem do homem e, pior, o seu destino — abalando as hipóteses a respeito de um deus criador.
Só que as instituições religiosas não costumam abrir mão de seu poder milenar. Não por acaso, um complô consegue deixar Edmond fora do jogo. Mas isso é detalhe, porque o herói do livro, não esqueçamos, é o esperto professor Langdon. Caberá a ele divulgar ao mundo o tal segredo (mas só depois de descobrir a senha de 47 letras). Ele também terá que proteger, durante um tempo, a bela Ambra Vidal — que, além de diretora do Guggenheim de Bilbao, é noiva do tal príncipe abobalhado.
Chegando a esse ponto da história, o leitor estará fisgado. Brown domina a arte de criar teorias da conspiração, dessas que se aproveitam de elementos reais para alimentar “fatos irreais” (expressão que deixou de ser tão contraditória em tempos de pós-verdades). O escritor americano capricha no uso de referências que nos aproximam dos seus delírios.
Edmond Kirsch, por exemplo, é claramente inspirado no bilionário Elon Musk, hoje o mais festejado guru do mundo da tecnologia — que ainda se ressente da morte de Steve Jobs, há quase seis anos. O conflito entre ciência e religião também pode render boas reflexões sobre o mundo doido que nos cerca.
Outro bom personagem é o Winston, software de inteligência artificial baseado em computação quântica (se é que isso já existe) capaz de ir muito além da inteligência humana (se é que isso ainda existe). Langdon e Winston tornam-se parceiros, numa relação quase humana.
Como a realidade é cada vez mais virtual, não é de se estranhar que a epígrafe do livro cite Joseph Campbell, o grande estudioso dos mitos e símbolos da Humanidade — a mesma especialidade do protagonista da história. Esta quinta aventura de Langdon se passa nos mais intrigantes museus, mosteiros e igrejas da Espanha. Tudo a ver. Nenhum outro país europeu foi tão fundo nas entranhas da fé católica. Por isso mesmo, é cenário ideal para a gestação de ultraconservadores como o bispo Valdespino, seitas malucas e reacionários políticos em geral.
Será que “Origem” é mais do mesmo ? Pode ser, só que o povo curte o estilo “me engana que eu gosto”. A gente sabe que o romance é uma mentirinha que não vai mudar nossa vida, mas, como sabem alguns religiosos, não há nada como uma mentira bem contada para nos consolar diante dos mistérios insondáveis. A não ser, claro, que nem tudo seja tão mentira assim.
Nos tempos difíceis, Dan Brown foi professor de inglês e de espanhol, além de músico. Chegou a gravar dois CDs que foram fracasso total de vendas. Reza a lenda que, em 1993, leu o romance “Juízo final”, de Sidney Sheldon (1997-2007), ficou inspirado e decidiu enveredar pela literatura. Foi então que sua vida mudou. E muito.
Depois de experiências literárias em coautoria com a mulher, Brown lançou seu primeiro romance, “Fortaleza digital”, em 1998. Tomou gosto pela fama com “Anjos & demônios” (2000) e “Ponto de impacto” (2001). Com “O código Da Vinci”, de 2003, sua fama explodiu, assim como sua conta bancária. Sem afobação, Brown emplacou “O símbolo perdido” (2009) e “Inferno”(2013).
É inegável o talento de Dan Brown para ganhar o leitor em busca de puro entretenimento, ainda mais porque cutuca a religiosidade, assunto cada vez mais espinhoso na nossa época, tão intolerante a opiniões e crenças alheias. Por essas e por outras, o americano não liga, aliás, para a crítica literária, que costuma torcer o nariz para a sua obra. Coisas da vida.
Daí a expectativa pela chegada de “Origem”, trazendo mais uma vez o professor Robert Langdon, que sabe tudo de religiões antigas. Pode apostar sem medo : vai vender pra burro. O vídeo promocional do novo livro bateu um milhão de acessos menos de 24 horas depois de ser lançado.
Mas “Origem” certamente vai provocar muito descontentamento, não só entre católicos, como também entre os criacionistas, sobretudo nos EUA. Criacionistas não são exatamente bem-humorados quando se trata de dizer que Deus não tem nada a ver com a origem do homem — tese do bilionário Edmond Kirsch no novo thriller.
De qualquer modo, Brown já deve estar preparado para uma nova perseguição religiosa (que, de resto, faz bem ao seu marketing). Em 2006, o Vaticano incluiu o livro e o filme “O código Da Vinci”, dirigido por Ron Howard, na lista de obras a serem boicotadas pelos cristãos de todo o mundo. Parece coisa da Idade Média. E é. É tão medieval que se torna tremendamente contemporâneo.
Só que, pelo jeito, o pedido de boicote sob o papado de Bento XVI não deu certo. Desde que foi lançado, “O código Da Vinci” vendeu mais de 80 milhões de cópias em todo o mundo, para alegria de livrarias e cinemas. Dos seus sete livros, três foram adaptados para o telão — sempre com Tom Hanks encarnando Langdon.
O currículo vencedor de Brown só é manchado por suspeitas de que ele tenha surrupiado o argumento principal do seu maior best-seller. Dois dos três autores de “The holy blood, holy grail”, de 1982, entraram na Justiça britânica acusando-o de plágio. Michael Baigent e Richard Leigh alegavam que ambas as obras partiam da ideia de que ainda existem descendentes de Cristo circulando por aí, protegidos por uma ordem secreta. A dupla perdeu a causa e ainda teve que pagar o equivalente a R$ 10 milhões das custas do processo. Brown sempre vence.