Eu tinha lido sobre a mostra, mas nem cogitei ir conferir. Depois de saber desse escândalo, fui lá para ver se era todo esse horror de perversão e iconoclastia. E a resposta é: não.
Já começam com a hipérbole de dizer que são 270 obras com esse conteúdo imoral. Eu passei por todas elas e olha, esse conteúdo dito perversivo não chega nem a 20% das artes.
Sobre a zoofilia: tem realmente um único quadro que mostra uma relação sexual com um animal. É uma obra que retrata um cenário de interior - e acho que a maioria sabe que tem muitos casos de pessoas que usaram ovelhas e outros animais para satisfazer suas vontades sexuais no campo. Não que isso justifique, mas há um contexto.
Next: a pedofilia. Se é por uma obra que fala em "criança viada", certamente a galera não conhece o meme (
http://criancaviada.tumblr.com). O quadro em si não faz menção alguma a pedofilia. Ele interlaça uns guris com expressões de gênero, mas sem qualquer subtexto de incitação sexual.
Pornografia: realmente tem várias obras e fotos que mostram nudez e até mesmo sexo (ou insinuação dele). Mas vamos combinar que essa reclamação é deveras moralista. Afinal, se é assim, vamos censurar todas as obras visuais, cinematográficas, o que o valha, que tenham nudez e sexo? Vamos cobrir o David de Michelangelo com uma manta?
Fora o contexto de preconceito aí, já que boa parte da "putaria" da exposição é de nudez/sexo masculino e homossexual.
Acerca de religião: tem várias obras que podem ser consideradas iconoclastas, de fato. Subvertem ou dão outra expressão a Jesus, à Bíblia, a hóstias. Tem desde uma fusão de Cristo e Sheeva, a uma Bíblia com imagens masculinas, a um Jesus ao lado de um gamo. Isso pode incomodar mesmo quem seja cristão. Mas olha, nem de longe é a maioria da exposição.
A mostra tem muito mais do que essas coisas. A maioria das obras são, inclusive, absolutamente inócuas, passando por quadros e objetos bem interessantes a coisas que nada dizem. É só gastar uma hora lá no Santander e conferir tudo.
Inclusive tem obras de Portinari, Alfredo Volpi, Antônio Caringi e Lygia Clark, por exemplo.
A exposição tem obras incômodas e polêmicas? Sim, tem. Mas o todo tá longe de ser o diabo pintado pela direita. Além de exagerarem e mentirem, estão promovendo uma campanha desproporcional e contra o museu, que todo ano sedia mostras incríveis.
Não retiro o direito dos cristãos se indignarem com coisas que agridam seus símbolos. Mas acredito que há um exagero e uma leitura equivocada do todo, provocados por uma descontextualização carregada de moralismo.
E sobre o fechamento da exposição:
O mais grave da decisão do Santander Cultural em encerrar a exposição Queermuseu é o precedente que se abriu.
Afinal, a instituição demonstrou que pode ceder ao gritedo popular, mesmo que este não seja condizente com a verdade - por exemplo, a insinuação de pedofilia em uma obra.
Abre-se o caminho para que, identificado um flanco em outra exposição do gênero - ou mesmo com temas distintos - inicie-se um movimento nas redes contra essa mostra. Que fará o Santander nesse caso? Firmará o pé em favor da exposição, ou cederá novamente à pressão?
Há, também, o perigo desse movimento, admirado com a vitória de hoje, mirar seus ataques para outras mostras do gênero. O roteiro é simples: faz-se vídeos e posts de denúncia nas redes; páginas enormes direcionam os seguidores contra as instituições; diante da repercussão negativa, precisam tomar uma decisão: manter-se firme ou ceder.
Mesmo a arte menos polêmica pode sofrer com esse movimento. Basta que desagrade um desses grupos. Afinal, um dos principais agentes contra o Santander foi um movimento que classifica qualquer opositor como "extrema-esquerda", além de ser uma das maiores fontes de fake news.
Um museu fechou suas portas hoje e encerrará uma exposição com um mês de antecedência. É assustador. Mais um sintoma dos dias obscuros que vivemos - e que poderão nos conduzir a coisas piores se não houver reação.