Dona Florinda sai de sua casa simultaneamente com Dona Clotilde, e as duas param para conversar:
DONA FLORINDA - Boa tarde, Dona Clotilde!
DONA CLOTILDE - Boa tarde! Ouça, é verdade o que andam dizendo por aí, que o Seu Madruga vai ficar rico?
DONA FLORINDA - Pelo que o Quico me contou, sim.
DONA CLOTILDE - Mas como, isso?
DONA FLORINDA - Eu não sei, ele não explicou direito... Parece que uma senhora perdeu algo que ele achou. E como essa senhora é muito rica, vai oferecer uma grande recompensa.
DONA CLOTILDE - Hum! Não será um embuste do seu menino?
DONA FLORINDA - O que é isso? De jeito nenhum! O Quico nunca diria uma mentira!
DONA CLOTILDE - Então a senhora o manda mesmo á padaria para comprar pão dormido, só por que é mais barato! Pois foi o que eu ouvi ele dizer ao Chaves! (RISOS)
DONA FLORINDA (disfarçando) - Bom... Há que se levar em conta que as crianças são muito inventivas... (RISOS) Olhe, aí vem a Chiquinha!
Chiquinha vai saindo de sua casa, e Dona Clotilde anda até ela.
DONA CLOTILDE - Espere, menina! Estão espalhando por aí que o seu pai vai ganhar um bom dinheiro. Isso é mesmo verdade?
CHIQUINHA (animada) - Mas é claro! E vai receber hoje mesmo!
DONA CLOTILDE - Não me diga!
CHIQUINHA - Sim, pois é, pois é, pois é! E agora eu estou indo avisar o carpinteiro!
DONA CLOTILDE - Ué, mas por quê?
CHIQUINHA - Por que ele falou que o meu papai lhe dá calote a tanto tempo, que da próxima vez que o visse, era capaz até fazer uma porta com a sua cara de pau! (RISOS) Mas agora ele vai quitar a dívida toda, e até com juros! E também a do confeiteiro, a do açougueiro, a do leiteiro, a do verdureiro... Ah, são tantos, tantos, que eu acho que só vou voltar à noitinha! (RISOS)
Chiquinha sai pulando, contente, enquanto Quico vem entrando. Dona Florinda o vê e o chama.
DONA FLORINDA - Quico!
QUICO - Sim, mamãe?
DONA FLORINDA (entregando algumas moedas ao garoto e falando alto, para Dona Clotilde escutar) - Olhe, tesouro, quero que você vá à padaria para mim, e me traga tudo isso aqui de pães fresquinhos!
QUICO - Pães fresquinhos? Vamos receber visita hoje, mamãe? (RISOS)
A cena passa, então, para a casa do Seu Madruga, que está lá com o Chaves e o Senhor Barriga.
CHAVES - Sabe, eu ainda não entendo como alguém paga tanto assim por uma simples caixinha de música!
SEU MADRUGA - Mas não é só a caixinha, são todas as lembranças que ela traz, Chaves!
CHAVES - Pois as minhas lembranças eu guardo na cabeça, e não em uma caixa! (RISOS)
SENHOR BARRIGA - Você não vai levar nada da sua infância, Chaves?
CHAVES - Sim!
SENHOR BARRIGA - O quê?
CHAVES - Esse arranhão bem aqui, na perna. Foi quando eu caí de um muro... (RISOS)
SENHOR BARRIGA - Mas não é disso que eu estou falando!
CHAVES - E então?
SEU MADRUGA - Deixe, Senhor Barriga, eu acho que ele ainda não consegue entender. E o senhor, não tem nada da sua infância?
SENHOR BARRIGA - Eu até hoje guardo um pijaminha que minha madrinha me deu, quando eu tinha apenas uns meses de vida!
SEU MADRUGA - Não me diga! Pois o senhor não sabe que eu durmo de roupa? Se pudesse me dar esse pijama...
SENHOR BARRIGA - Mas eu já disse que era de quando eu tinha apenas alguns meses.
SEU MADRUGA - Sim, mas o senhor com poucos meses devia vestir o número que eu visto hoje! (RISOS)
SENHOR BARRIGA - O quê?
SEU MADRUGA - Digo...
SENHOR BARRIGA - Não diga. Se contente apenas em pagar os quatorze meses de aluguel que me deve!
CHAVES - E depois, agora o senhor pode comprar uns dez pijamas!
CHIQUINHA (entrando) - Pois eu acho que não. Com o tanto que o meu pai deve, o dinheiro que sobrar só vai dar para comprar um caramelinho! (RISOS)
SEU MADRUGA - Ah, Chiquinha, que bom que você chegou! Eu não consigo lembrar aonde pus a chave da caixinha!
CHIQUINHA - Ora, a única chave que nós temos aqui em casa é a que fecha a porta do banheiro! (RISOS)
SEU MADRUGA - É mesmo! Como é que eu pude me esquecer! ( vai até o banheiro e volta com a chavinha. Põe na caixa de música e dá corda) Há algo errado.
CHAVES - O quê?
SEU MADRUGA - A bailarina não está rodando bem.
CHAVES - Não estará mal calibrada? (RISOS)
SEU MADRUGA - Deve ser algum problema na corda.
CHAVES - Colocando outra talvez melhore. Eu posso pegar a do varal... (RISOS)
SEU MADRUGA - Olha, Chaves, você quer mesmo ajudar? Então vá comprar uma lanterninha.
CHAVES - Uma lanterninha?
SEU MADRUGA - É, daquelas pequenininhas, porque eu vou ver se consigo mexer nas engrenagens.
CHAVES - Então está bem.
Chaves sai e, no pátio, se encontra com o Quico.
QUICO - Ei, Chaves, o Seu Madruga já foi buscar o dinheiro?
CHAVES - Ainda não, ele está precisando de uma luz e eu tenho ir pegar.
Ele vai para a rua e Dona Florinda sai de sua casa.
DONA FLORINDA - Quico, vai chamar o Chaves pra mim?
QUICO - Agora ele não pode, mamãe. Está muito ocupado!
DONA FLORINDA - Com o quê?
QUICO - Ele foi dar a luz! (RISOS)
DONA FLORINDA (espantada) - A quem?
QUICO - Ao Seu Madruga! (RISOS)
DONA FLORINDA (cochichando) - Olha, tesouro, deixe de falar bobagens e vá você lá no padeiro, trocar esses pãezinhos pelos dormidos (lhe entrega o saco de pães). (RISOS)
QUICO - Pode deixar.
DONA FLORINDA - E traga a diferença! (RISOS)
Há uma transição de cena. Seu Madruga está em casa, terminando de consertar a caixinha. Senhor Barriga, depois de andar um pouco pela sala, senta-se no sofá em falso, afundando toda a parte onde ficou e empinando o outro lado do assento. Chaves e Chiquinha, que estão no chão vendo os papéis de carta espalhados, olham-se espantados e fazem, simultaneamente, um gesto de “gordura”. (RISOS)
SENHOR BARRIGA - Quer dizer que o senhor já foi marinheiro?
SEU MADRUGA - E dos bons!
SENHOR BARRIGA - Então não sei por que saiu da profissão.
SEU MADRUGA - Sinceramente, nem eu sei... Eu não me entregava à barriga, Senhor Ócio. (RISOS)
SENHOR BARRIGA - O que disse?
SEU MADRUGA - Digo, digo... Eu não me entregava ao ócio, Senhor Barriga!
SENHOR BARRIGA (descrente) - Não diga...
SEU MADRUGA - Falo sério! Fazia de tudo para não sentir preguiça ao ver todas as obrigações que eu teria que cumprir. Deixava até de comparecer ao trabalho para que isso não acontecesse! (RISOS)
CHIQUINHA (mostrando um papel ao Chaves) - Olha, Chaves, esse aqui é o meu preferido! Um casal de namorados com um guarda-chuva, e umas gotinhas douradas caindo...
CHAVES - Como são bobos, não?
CHIQUINHA - Bobos?
CHAVES - Claro! Se fosse eu que estivesse aí, virava o guarda-chuva de cabeça para baixo e tentava pegar quanto ouro eu conseguisse! (RISOS) E por que você coleciona esses papéis?
CHIQUINHA - Para passar o tempo. Tem quem colecione selos, ou moedas...
SENHOR BARRIGA - Ou meses de aluguel... (RISOS)
SEU MADRUGA (se levantando entusiasmado) - Pois fique sabendo que eu já terminei! A caixa está funcionando perfeitamente!
Chiquinha e Chaves também se levantam, vibrando.
CHIQUINHA - Vai entregá-la agora, papai?
SEU MADRUGA - Vou, filha, o endereço é per-(ic)... per-(ic)... Perto!
CHAVES - Chiquinha, eu acho que dessa vez a engrenagem que está com defeito é a do seu pai! (RISOS)
SEU MADRUGA - Não é nada dis-(ic)-so! O que acontece é que eu fiquei com so-(ic)... com so-(ic)...
CHAVES - Consolado? (RISOS)
CHIQUINHA - Consorte! (RISOS)
CHAVES - Consomido? (RISOS)
SEU MADRUGA - Com soluço! Deve ter (ic) sido de tanta emoção...
CHIQUINHA (beijando-o na bochecha) - Ah... Boa sorte, pai!
SEU MADRUGA - Vou ter, filha! Eu sinto que, as-(ic)... assim que passar por essa porta, minha vida vai (ic) mudar.
Assim que Seu Madruga cruza a porta, é abraçado por Dona Clotilde, que estava de tocaia, esperando.
DONA CLOTILDE - Meu amor! (RISOS)
SEU MADRUGA - Dona...
DONA CLOTILDE - Agora que a sua situação financeira não é mais um problema, você não precisa se envergonhar!
SEU MADRUGA - Mas se envergonhar do quê?
DONA CLOTILDE - De me pedir em casamento! Mamá, por tanto tempo eu esperei! (RISOS)
SEU MADRUGA - Mas eu...
DONA CLOTILDE - Não diga nada! Não vamos estragar com palavras esse momento que é só de sentimentos!
SEU MADRUGA - Realmente, a senhora é incapaz de imaginar o que eu estou sentido agora... (RISOS)
DONA CLOTILDE (abraçando-o com mais força) - Nós viveremos juntos o resto de nossos dias! Teremos tata paz! Paz! Oh, Mamá, agora eu descobri por que branco é a cor das noivas!
SEU MADRUGA - E eu, por que preto é a dos noivos! (RISOS)
DONA CLOTILDE - Seu coração está batendo tão apressado! Diga-me, qual é a sua sensação agora?
SEU MADRUGA - Alívio!
DONA CLOTILDE (estranhando) - Alívio?
SEU MADRUGA - É sim, muito obrigado! Com esse susto a senhora fez passar o meu soluço. (RISOS)
DONA CLOTILDE (largando-o e indo para sua casa, zangada) - Insensível! (RISOS)
Seu Madruga ainda fica no pátio por alguns momentos, tendo alguns calafrios, mas logo se lembra do embrulho e sai para entregá-lo. Quico volta da rua e sua mãe, abrindo a janela, o vê.
DONA FLORINDA - Quico!
QUICO (aproximando-se da janela) - Sim, mamãe?
DONA FLORINDA - Entregou os pãezinhos como eu mandei?
QUICO - Claro, mamãe, fiz tudo certinho como a senhora falou!
DONA FLORINDA - Que bom menino! E trouxe a diferença?
QUICO - Não se preocupe que depois eu trago.
DONA FLORINDA (estranhando) - Depois? Como assim depois?
QUICO - A senhora não me disse para trocar os pães frescos pelos dormidos?
DONA FLORINDA - Disse.
QUICO - Pois então? A diferença entre eles é de um dia todinho! Então esses que eu deixei lá hoje, vou buscar amanhã! (RISOS)
Há, então, uma transição de cena e pode-se ver Seu Madruga voltando ainda com o embrulho. Chaves e Chiquinha estão no pátio, esperando-o.
CHIQUINHA - Como é que foi, papai?
SEU MADRUGA - Foi péssimo, minha filha. Imagine que, quando eu cheguei lá, já haviam entregado uma caixinha de música para a grã-fina, e ela reconheceu como sendo a que estava perdida!
CHIQUINHA - Mas e a sua?
SEU MADRUGA - Não vale nada! Agora o que eu quero entender é como duas pessoas perdem um mesmo objeto, num mesmo local, e praticamente na mesma data!
Dona Clotilde sai de sua casa com um cesto de roupas sujas e se dirige para o tanque. Acaba escutando um pouquinho da conversa e começa a chorar baixinho. Todos olham para ela.
DONA CLOTILDE - Me desculpem, mas eu escutei vocês falando de objetos perdidos...
SEU MADRUGA - Bom... Mas e daí?
DONA CLOTILDE - É que eu me lembrei de uma caixinha de música que minha mãe me deu, quando eu ainda era criança!
SEU MADRUGA - Puxa! Mas que memória! (RISOS) Digo... Digo...
DONA CLOTILDE - É melhor não dizer nada!... A minha mãe faleceu a algumas décadas...
CHAVES - Décadas? Eu pensei que já se contasse em séculos! (RISOS)
SEU MADRUGA (zangado) - Chaves, quer calar essa boca? Mas prossiga, Dona Mumilde... Digo, Dona Clotilde, Clotilde! (RISOS)
DONA CLOTILDE (já um pouco brava) - Acontece que, um dia, quando eu estava no porto, acabei esquecendo a caixinha no cais.
SEU MADRUGA - Não!
DONA CLOTILDE - Sim! O pior é que eu estava refazendo o caminho para ver se conseguia encontrá-la, quando vi um homem que passou e a levou embora!
SEU MADRUGA - E como era esse homem?
DONA CLOTILDE - Magro, espichado, assim como uma lombriga passada a ferro! (RISOS)
SEU MADRUGA - Mas o que é isso, o que é isso? Ele não era nem um pouco bonito?
DONA CLOTILDE - Era horrível. Quando andava, dava a impressão de uma lesma se revirando no sal. (RISOS) Agora, reparando bem, até que ele era parecido com o senhor.
SEU MADRUGA - Que que foi, que que foi, que que há? (RISOS)
DONA CLOTILDE (se insinuando) - Ah, mas o senhor tem todo um... Charme. (RISOS)
SEU MADRUGA (ficando alegre) - Mas diga, quanto a senhora pagaria para ter a tão estimada caixinha de volta?
DONA CLOTILDE - Pagar? O senhor não me conhece! Se eu reencontrasse esse homem, juro que o estrangularia com a minhas próprias mãos, por ter acabado com a única lembrança que eu tinha da minha mãezinha! (RISOS)
Dona Clotilde sai, nervosíssima, e Seu Madruga volta a ter os calafrios.
SEU MADRUGA - Chaves, venha cá.
CHAVES - Outra vez precisam de um burro de carga! (RISOS)
SEU MADRUGA (lhe entregando o embrulho) - Quer começar de novo? Vá jogar isso aqui no lixo, e rápido.
CHAVES - O que tem nesse saco?
SEU MADRUGA - Nada, não olhe. Simplesmente se livre disso, e de uma vez por todas! (RISOS)
Chaves vai, e Seu Madruga se senta na escadaria, estafado. Chiquinha se aproxima.
CHIQUINHA - Papaizinho, agora que tudo acabou, será que eu finalmente posso ir lá na casa da Pópis? (RISOS)
SEU MADRUGA (tomando a caixa que estava nas mãos dela, pegando os papéis de carta e rasgando em pedaços bem miúdos) - Toma, pra aprender! Foi assim que essa confusão toda se iniciou!
Ele deixa Chiquinha chorando no meio do pátio e entra em casa, aonde está o Senhor Barriga, lendo o jornal.
SENHOR BARRIGA (espantado) - Senhor Madruga, pode se considerar um homem de sorte!
SEU MADRUGA - Por quê?
SENHOR BARRIGA - Logo abaixo do anúncio da caixinha de música tem outro, de um colecionador de papéis de carta! Ele oferece uma verdadeira fortuna por um tipo muito raro, com a estampa de um casal de namorados abraçados, com um guarda-chuva, em meio a uma chuva dourada! Percebe, Senhor Madruga? É o mesmo papel que a sua filha tem! (RISOS)